quinta-feira, 12 de novembro de 2015

O pãozinho

Estas são simples notas sobre o momento em que me fizeste te amar para sempre.

Eram quatro horas e meia da manhã, estávamos deitados juntos, naquela posição de sempre: tua cabeça descansando em meu peito, tua perna esquerda envolvendo-se com as minhas pernas e teu braço esquerdo me laçando, jogado sobre meu corpo; já teu braço direito  que ora acariciava meu cabelo, ora beliscava minha barba  estava descansando embaixo do meu travesseiro; eu, como sempre, estirado, as pernas esticadas — que às vezes dobravam-se para se confortarem com a tua  meu braço esquerdo percorria leve por debaixo do teu pescoço e subia pelas tuas costas, convidando minha mão a repousar um pouco abaixo do teu seio, atando-te, ainda mais, a mim, meu braço direito dava repouso ao meu rosto e o contornava  por vezes nossas mãos direitas se encontravam e se acarinhavam. Estávamos o mais achegado possível, era um sufoco, um sufoco bom.

Eu lembro bem! Nessa hora, o vizinho do prédio em frente ao meu quarto acendeu a luz forte do seu banheiro e o feixe veio direto ao encontro de nossos rostos, quase como um holofote. Havíamos esquecido de baixar a cortina da janela. Minhas pálpebras sentiram o incômodo do clarão e fecharam-se com mais força. Nesse instante acordei, demorei uns segundos para assimilar o que acontecia e lentamente abri os olhos, ainda um pouco cegos pelo brilho travesso da lâmpada que nos atacou. 

Dei um suspiro suave que manifestou meu aconchego e, sonolento, levei minha mão esquerda até maça do teu rosto e tentando deslizar com carinho meus dedos por lá. Percebendo minha movimentação imprevista, despertaste, abriste os olhos também castigados pelo esplendor e sussurraste... com toda a moleza do mundo:

 Hum?!

Ainda um pouco adormecido, respondi, com a voz arrastada:

 Vou baixar a cortina.

Enquanto ainda aproveitava nosso amparo mútuo e preparava-me para o árduo caminho até a janela, tu falaste, misturando preguiça e meiguice:

 Amorzinho, tô com fome. 

 Quer comer algo?  perguntei, nem percebendo a obviedade da minha questão.

 Pode ser.  murmuraste baixinho, com os olhos ainda fechados.

Então começamos, calmos e amorosos, a nos desajeitar. Aproximei-me dos teus lábios e roubei um beijo pequeno, tu me olhaste inocente e, singela, passaste os dedos em baixo do meus olhos  limpando algum cisco ou cílio perdido, suponho. Demoramos, mas estávamos em pé, finalmente. Caminhamos até a cozinha, trocamos algum abraço com gosto de sono e procuramos por comida. Falei:

 Não tem muita coisa para comer. Tenho esses pães de forma e presunto e queijo, eu acho. Ah, acho que tem um pouco de massa que sobrou da janta. O que tu prefere?  indaguei, preocupado pelo cardápio escasso que te oferecia.

 Pode ser o pãozinho.  respondeste convicta, acalmando meu estado apreensivo.

Desenhei um riso, devo ter achado engraçado o diminutivo, e comecei a preparar o sanduíche. Ofereceste ajuda, mas em questão de pouco tempo já havia preparado o teu lanche. Coloquei em um prato e te dei. Estavas sentada na cadeira próxima à mesa, deixaste o prato e pegaste com as duas mãos a humilde merenda. Mordeste. Enquanto mastigavas, fitaste alegre os meus olhos e, de súbito, apresentaste o semblante de quem acabou de ter uma ideia... direcionaste o olhar para o teu simples alimento e, com a maior delicadeza que tuas pequenas mãos podiam ter, dividiste o "pãozinho" ao meio.

Contemplaste-me com teus olhos castanho-escuros inundados de gratidão e estendeste, com doçura, tua mão para mim, cedendo-me uma das metades do pão. 

Assim, desmontaste-me, desarmaste-me, despiste-me. Apenas consegui sorrir timidamente e acenar com a cabeça em negativo. Olhei para o chão, bobo, totalmente bobo. Foi esse o momento! Senti alguma coisa esquentando minha alma. Algo parecido com magia, borboletas, encanto, deleite... eu não sei, não sei. Ninguém sabe, não há como explicar. Só sei que foi nesse exato momento  que pareceu demorar horas para passar.

Alguns minutos depois, terminaste o desjejum. Levantaste da cadeira, vieste até mim, beijaste-me e, pegando em minha mão, levaste-me ao quarto. Eu estava ainda desorientado pelo que havia acontecido, mas tu te jogaste na cama, arrumaste os cobertores e me convidaste:

— Vem. Vamos dormir.

Eu fui! Conchegamo-nos de novo, apertados, na mesma posição de sempre.

Pois é, a cortina ficou aberta. Às seis horas da manhã o sol raiou e nos iluminou, deixando nossos olhos irritados mais uma vez. Eu levantei, sem te acordar, e a baixei, finalmente.

Mas eu continuava iluminado... Graças ao teu amor, graças ao pãozinho.


Faith Te, Bread Roll (2010)

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