quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Soul Parsifal

E, no fim, eu já imagino: eu estou sentado no sofá, assistindo aquela série de romance de sempre, brincando com o gato que eu jamais quis ter; e tu estarás no quarto, deitada na cama, com o cachorro que tu jamais quiseste ter enrolado em teus pés. E assim eu me apaixono por ti. Só por ti. Para ti eu me entrego!

Porém, voltemos ao início. Eu não sei bem o que falar. Talvez há muito sentimento para tão pouco tempo, talvez eu nem saiba o que sinto direito. Quando a paixão se torna o alimento da alma, as palavras não satisfazem o coração. Acredito que seja por isso que eu não consigo te dizer o que guardo dentro de mim. 

Preciso dizer que compreendo todas as tuas incertezas, inquietações e temores - eu também os tenho. Mas meu sentimento por ti vagueia tão doce pelo meu corpo que posso esquecer todos meus receios e me aconchegar no teu colo, com a certeza de que tudo ficará em paz.

Fique com as chaves e entre, faça bagunça no meu corpo, dessarume meu cabelo, faça uma fogueira em nossa sala e espere a brasa queimar, derreter e sufocar nossa paixão. 

Deixe tudo acontecer...

Ontem eu não estava nada bem, até que tu falaste que me amava.


Leonid Afremov, Moment of Passion (2013)

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Reação - Episódio II

Cansei-me de me ver tão domável. Agora, refletindo, constato como amiúde optei pelo perdão - por pura tolerância, por tentar ser bondoso - frente à dissimulação daqueles que tanto adorei. Lastimo, pois mil dias de afeição não substituem sequer um dia de deslealdade. 

Por minha culpa, minha culpa, minha tão grande culpa! Não fui capaz de observar as mostras deixadas, aprendi e quis ser benevolente, enquanto minha natureza rebelde, tal qual um profeta, a cada indulgência, insurgia-se ululante.

Independente de teus cabelos negros, que tantas cores já tiveram, não te perdoarei; independente de tua graciosidade, que me regalou com tão sublimes emoções, não te perdoarei; independente de tua ingenuidade, que, tal como a minha, puramente te isenta, não te perdoarei. Não, nunca mais te perdoarei... Lembrar-me-ei, apenas, de tua traição.

Digo-vos, sem receio: aceito cem anos de solidão a um de perdão.

Hoje eu preciso dizer que te odeio!


Hieronymus Bosch, Fall of the Damned into Hell (1490)

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Reação - Episódio I

"Precisarei me afastar de vós". Digo-vos essa frase que não chegará aos vossos ouvidos, mas apercebereis conforme o tempo passar. 

Distante estarei, buscando encontrar em mim uma reação, razão pela qual me vejo débil hoje, debilidade que me persegue por algum tempo. Sim, o tempo passou... miseravelmente eu o usufrui, criei uma linha cômoda que me faz tão mal, que me fez tão mau. Em verdade vos digo, por mais egoísta que eu possa ser, busco essa reação pelos outros. Eu sei bem que minha profissão, meus amigos, minha família e a pessoa com quem me relaciono amorosamente merecem uma pessoa digna, uma pessoa acertada. Acertos, por mais que eu lamente, foram poucos nos últimos tempos, apesar de as tentativas de mudança serem muitas.

Nesta segunda, às seis horas da manhã, decidi reagir. Reagir de verdade. À medida que espero inerte, prossigo nesse pernicioso caminho. Preciso mudar de rumo o mais rápido possível, antes que esse trajeto se torne tão longo que inviabilize o meu retorno. 

Abyssus abyssum invocat... Portanto, lutarei por uma reação!


Edvard Munch, Skrik (1893)

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Roméo et Juliette

Você sempre costuma reclamar das colegas da faculdade. Não sei como, mas as meninas que sentam na frente sempre conseguem incomodá-la de alguma forma. Às vezes eu penso em dizer que você deve relaxar e deixar de lado essas intrigas que devem ser coisa da sua mente. Porém, sinceramente, eu gosto de ouvir suas reclamações e de ficar com mirabolantes ideias até você largar aquele angelical:

 - Tu acredita?

Bem, eu nunca acredito. Algumas vezes nós temos algumas discussões mais filosóficas sobre o que aconteceu em determinado momento e, na maioria das vezes, eu tento dizer que a cara de "nojinho" dela talvez não tivesse nada a ver e você poderia ficar de boa.

De vez em quando, eu gosto da sua pirraça - o que é muito diferente de quando você fica zangada. Tipo aquela vez que você ficou me contando do dia em que elas foram reclamar da nota injusta - que, segundo você, não era injusta - e o professor venceu o debate e as deixou num embaraço. Eu estava tranquilo no sofá e você sentada na ponta me contando essa história até que eu te interrompo, antes do "Tu acredita?" e falo:

- Eu tenho cookies! Por que eu quero falar sobre suas colegas podendo estar aqui comendo meus cookies?

Meio que me arrependo da infame brincadeira, até por que seu biquinho e a cara de ódio me intimidaram. E, depois de uns segundos que me deixaram sem graça, você não aguenta e sorri tão ingenuamente. Eu sorrio junto, não pela piada, mas por poder desfrutar de uma luz tão leve quanto a sua e, quando percebo isso, me sinto feliz.

Sei lá, tudo que eu sempre quis era um amor bucólico e você é a melhor para me dar esse sossego tão desassossegado. Quando volto a mim, vejo você ainda sorrindo e me deixo recostar no sofá e, ainda com um riso no rosto, deixo de te admirar e viro a cara para o outro lado, ainda com aquela sensação de deleite.

E, assim, do nada, você se joga em cima de mim e me perfuma.  E eu fico naquela posição meio que sentado quase deitado, com o calor do seu hálito nas minhas costas, provenientes da sua risada que ainda prosseguia. Eu meio sem entender, até que você diz:

- Adoro sua covinha.

Sua suavidade me desmancha. Nem a aquarela mais linda poderia descrever meus sentimentos, nem Shakespeare, em seus dias mais puros, poderia sonetear minha vibração. Você levanta e eu também, beijo seu rosto e desligo a tevê.

Abro meu quarto para você entrar... aprecia o quarto por inteiro. Noto uma certa alegria que você tenta ocultar. Então, você fala algo sobre o livro que está em cima da mesa e eu tiro da cama o violão e falo algo sobre ele estar desafinado. Aí você senta na cama e, de leve, eu empurro seus ombros para trás e você cai. Finalmente, deitamos juntos.

Por fim, desligo as luzes, para que possamos ver as estrelas.



Ford Madox Brown, Romeo and Juliet (1867)