sexta-feira, 22 de setembro de 2017

A sepultura do homem vivo

Tortura-me o ócio
Sadomasoquista que sou
Não abro mão da dor
Pois melhor saber que há dor
E deixá-la doer
Do que sorrir em vão

Saber que dói
E não dissimular a dor
E não transformar os tapas em risos devassos
Numa lascívia construída em relutância
É melhor que renegar sensações
E entregar-se aos tapas e arranhões
Que alguns chamam de amor
Ou da graça da vida

Na sanidade
Da dor improdutiva
Ou na loucura
Da saúde rentável
Revela-se a morte

Eu prefiro a morte
Na sua decadência autêntica
Do que a morte
Na elegância insensata

Mas ainda espero uma resposta
Posto que preciso perguntar:

Como fugir das sepulturas que nos engavetam vivos?

Agora volto à cova.
Se alguém solucionar, ao lado está meu contato.
Só lhes peço, sejam rápidos.
Antes que me tapem.


Manuel Domínguez Sánchez, El suicidio de Séneca (1871)

sábado, 2 de setembro de 2017

Ser resiliente

Peco ao te memorar
Peco ao te murmurar

Pois...

Minha alma pesa
Puxa o corpo ao chão
Meu coração lesa
Tolhe do corpo a razão
Então minha voz inquieta
Quer reagir à imposição

Mas...

O nó da garganta
Manter-se-á.

Porque não vou gritar.
Não vou gritar.

Passará a angústia estridente
e o ser resiliente...

Suportará

Sobrevivente.


Karoly Ferenczy, Man sitting on a log (1895)

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Reação - Episódio IV

De que valem as próximas palavras? De que valem as próximas linhas?...


As angústias de meu espírito mobilizam o meu corpo, encorajam a minha mão e a partir do movimento dos meus dedos escrevem o que melhor em palavras posso expressar para promover em meu corpo uma reação a qual anseia o espírito angustiado. Eis o ciclo! Do espírito ao corpo e do corpo ao espírito. 

Não obstante, apesar de meu espírito discernir e assentir tal processo, como qualquer outra pessoa que promulga uma ação insubmissa, meu corpo não responde aos axiomas da minh'alma. De modo consequente, todos os pensamentos se tornam vãos, todas as mudanças idealizadas se tornam fábulas, todas as linhas sediciosas se tornam simples quimeras.

Basta! Estas linhas valerão. Eu juro que valerão.

Sei que trilho uma rota vacilante, pois, ao prescrutar um tempo não tão pretérito, memoro que encontrava-me cercado por essa mesma inquietação, fiando-me nessa mesma solução e orando esse mesmo discurso.

Por isso, cá me prostro e suplico: fazei de mim um só corpo e um só espírito. 

Sucumbirão essas palavras. Desaparecerão essas linhas. De agora em diante, em meu corpo será tatuada a reação! Cada ato, uma palavra; cada atitude, uma nova linha...

Na mesma matéria e substância. E assim será...

Faço de mim um só corpo e um só espírito.


William Blake, The Reunion of the Soul and the Body at the Resurrection (1808)

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Olhos verde-mar

Por teus olhos cor de mar
Por tuas pupilas dilatadas
Marujos munem-se de armas
Piratas desafiam ondas bravas
Para em teus dois oceanos navegar

Envaidecidos pelo esverdear

Magnetizados por teu mirar
São seduzidos
Mas quando ousam defrontar
O repuxo do teu olhar

Sofrem... aturdidos

Perdem a coragem

Desvariam-se ao fitar
Tais olhos-miragem
Hipnóticos e provocantes
Então, imersos em paranoias trovejantes
Zarpam sem neles mergulhar
Tão receosos, tão delirantes

Porém tua visão borrasca não me abala
Resistiria mais de mil tempestades
Para penetrar em teus círculos lagunares
Pois é uma graça que vale qualquer batalha
Em quatro cantos ou sete mares

Assim, ébrio como Ahab, sigo em teu encalço

Mantendo a esperança
De conquistar teus verdes realços
Para desfrutar de tua bonança

Ao ter a vista
Eternamente
A me encarar


Madalena Lobao-Tello, Woman With Green Eyes (2012)

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Autonaufrágio

Quero naufragar
No teu corpo
Desbravar a tua ilha
Esbarrar nas tuas linhas
Tuas pintas...
Teus pontos...
Desvendar-te pouco a pouco
Sem pressa ao te tocar
A divagar devagarinho
Sem encontrar nenhum caminho
Me perdendo
Ao te passear


Henry Asencio, Mystique (2007)

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

O pãozinho

Estas são simples notas sobre o momento em que me fizeste te amar para sempre.

Eram quatro horas e meia da manhã, estávamos deitados juntos, naquela posição de sempre: tua cabeça descansando em meu peito, tua perna esquerda envolvendo-se com as minhas pernas e teu braço esquerdo me laçando, jogado sobre meu corpo; já teu braço direito  que ora acariciava meu cabelo, ora beliscava minha barba  estava descansando embaixo do meu travesseiro; eu, como sempre, estirado, as pernas esticadas — que às vezes dobravam-se para se confortarem com a tua  meu braço esquerdo percorria leve por debaixo do teu pescoço e subia pelas tuas costas, convidando minha mão a repousar um pouco abaixo do teu seio, atando-te, ainda mais, a mim, meu braço direito dava repouso ao meu rosto e o contornava  por vezes nossas mãos direitas se encontravam e se acarinhavam. Estávamos o mais achegado possível, era um sufoco, um sufoco bom.

Eu lembro bem! Nessa hora, o vizinho do prédio em frente ao meu quarto acendeu a luz forte do seu banheiro e o feixe veio direto ao encontro de nossos rostos, quase como um holofote. Havíamos esquecido de baixar a cortina da janela. Minhas pálpebras sentiram o incômodo do clarão e fecharam-se com mais força. Nesse instante acordei, demorei uns segundos para assimilar o que acontecia e lentamente abri os olhos, ainda um pouco cegos pelo brilho travesso da lâmpada que nos atacou. 

Dei um suspiro suave que manifestou meu aconchego e, sonolento, levei minha mão esquerda até maça do teu rosto e tentando deslizar com carinho meus dedos por lá. Percebendo minha movimentação imprevista, despertaste, abriste os olhos também castigados pelo esplendor e sussurraste... com toda a moleza do mundo:

 Hum?!

Ainda um pouco adormecido, respondi, com a voz arrastada:

 Vou baixar a cortina.

Enquanto ainda aproveitava nosso amparo mútuo e preparava-me para o árduo caminho até a janela, tu falaste, misturando preguiça e meiguice:

 Amorzinho, tô com fome. 

 Quer comer algo?  perguntei, nem percebendo a obviedade da minha questão.

 Pode ser.  murmuraste baixinho, com os olhos ainda fechados.

Então começamos, calmos e amorosos, a nos desajeitar. Aproximei-me dos teus lábios e roubei um beijo pequeno, tu me olhaste inocente e, singela, passaste os dedos em baixo do meus olhos  limpando algum cisco ou cílio perdido, suponho. Demoramos, mas estávamos em pé, finalmente. Caminhamos até a cozinha, trocamos algum abraço com gosto de sono e procuramos por comida. Falei:

 Não tem muita coisa para comer. Tenho esses pães de forma e presunto e queijo, eu acho. Ah, acho que tem um pouco de massa que sobrou da janta. O que tu prefere?  indaguei, preocupado pelo cardápio escasso que te oferecia.

 Pode ser o pãozinho.  respondeste convicta, acalmando meu estado apreensivo.

Desenhei um riso, devo ter achado engraçado o diminutivo, e comecei a preparar o sanduíche. Ofereceste ajuda, mas em questão de pouco tempo já havia preparado o teu lanche. Coloquei em um prato e te dei. Estavas sentada na cadeira próxima à mesa, deixaste o prato e pegaste com as duas mãos a humilde merenda. Mordeste. Enquanto mastigavas, fitaste alegre os meus olhos e, de súbito, apresentaste o semblante de quem acabou de ter uma ideia... direcionaste o olhar para o teu simples alimento e, com a maior delicadeza que tuas pequenas mãos podiam ter, dividiste o "pãozinho" ao meio.

Contemplaste-me com teus olhos castanho-escuros inundados de gratidão e estendeste, com doçura, tua mão para mim, cedendo-me uma das metades do pão. 

Assim, desmontaste-me, desarmaste-me, despiste-me. Apenas consegui sorrir timidamente e acenar com a cabeça em negativo. Olhei para o chão, bobo, totalmente bobo. Foi esse o momento! Senti alguma coisa esquentando minha alma. Algo parecido com magia, borboletas, encanto, deleite... eu não sei, não sei. Ninguém sabe, não há como explicar. Só sei que foi nesse exato momento  que pareceu demorar horas para passar.

Alguns minutos depois, terminaste o desjejum. Levantaste da cadeira, vieste até mim, beijaste-me e, pegando em minha mão, levaste-me ao quarto. Eu estava ainda desorientado pelo que havia acontecido, mas tu te jogaste na cama, arrumaste os cobertores e me convidaste:

— Vem. Vamos dormir.

Eu fui! Conchegamo-nos de novo, apertados, na mesma posição de sempre.

Pois é, a cortina ficou aberta. Às seis horas da manhã o sol raiou e nos iluminou, deixando nossos olhos irritados mais uma vez. Eu levantei, sem te acordar, e a baixei, finalmente.

Mas eu continuava iluminado... Graças ao teu amor, graças ao pãozinho.


Faith Te, Bread Roll (2010)

sábado, 24 de outubro de 2015

Beija-me, cospe-me

Quero sorver teu beijo
De um jeito baixo, subversivo
Beijo torpe, nobre, agressivo 
Extremo, forte, repulsivo
Sem sistema, trêmulo, desinibido
Com unha, dente, mordida
Beijo surtado e intempestivo
Tempestade em tua saliva
Sufocante, ensandecida
Lábios desvairados, possessivos
Beijo insaciável, sem abrigo
Sem fim
Sem ar
Com bem dispostas línguas
A naufragar
Explosivas.


Bruno Steinbach, O Beijo Gitano – Imagem Molecular (1998)