Cansei-me
de me ver tão domável. Agora, refletindo, constato como amiúde optei pelo
perdão - por pura tolerância, por tentar ser bondoso - frente à dissimulação
daqueles que tanto adorei. Lastimo, pois mil dias de afeição não
substituem sequer um dia de deslealdade.
Por minha culpa, minha culpa, minha tão grande
culpa! Não fui capaz de observar as mostras deixadas, aprendi e quis ser
benevolente, enquanto minha natureza rebelde, tal qual um profeta, a cada
indulgência, insurgia-se ululante.
Independente de teus cabelos negros, que tantas cores já
tiveram, não te perdoarei; independente de tua graciosidade, que me regalou com
tão sublimes emoções, não te perdoarei; independente de tua ingenuidade, que,
tal como a minha, puramente te isenta, não te perdoarei. Não, nunca mais te
perdoarei... Lembrar-me-ei, apenas, de tua traição.
Digo-vos,
sem receio: aceito cem anos de solidão a um de perdão.
Hoje eu preciso dizer que te odeio!
Hieronymus Bosch, Fall of the Damned into Hell (1490)